Não lembro em que momento meu pai decidiu que iríamos ao jogo do Brasil que aconteceria no Couto. Aliás, nem sei se foi uma decisão. Em tempos bem mais simples, talvez fosse só uma tentativa. O que lembro exatamente era da expectativa pela notícia que importava: se havíamos ou não conseguido os ingressos. Eu estava no meu quarto quando ele chegou do trabalho. E era o trabalho o grande impeditivo: não tinha como abandonar o posto pra enfrentar uma fila por dois ingressos. A missão coube a um amigo, que ficou encarregado de comprar pra galera da empresa. Como eu disse, eram tempos mais simples, e por mais simples, também tempos de pouca informação. Quando chegou a vez do amigo na bilheteria, foi informado que só poderiam ser vendidos dois ingressos por pessoa.
O ano era 2001 e eu já chorava por títulos perdidos e conquistados pelo Coritiba. A Copa do Mundo também se aproximava. 98 estava fresca na memória. Sábado, depois das 14h, o primeiro site que eu abria era o da FIFA. As atualizações eram pouquíssimas, mas era lá que eu acompanhava quais seleções estavam próximas de se classificar pro Mundial. Esse era o Lucas de 10 anos, que vestia uma camisa amerela falsificada da Seleção quando o pai chegou do trabalho.
Na minha memória, ele contou primeiro que o amigo não tinha conseguido ingressos pra todo mundo. Com a ajuda de alguém que estava atrás dele na fila, um rolo aqui, outro ali, convencendo mais um e mais outro, ele tinha conseguido cinco dos 10 previstos. Lembro da apreensão. Então não vamos? Vamos, vamos sim. Não sei quem ficou de fora, mas dois eram nossos. Era um alívio, com culpa, com felicidade e com muita ansiedade.
Chega o grande dia. Lembro da chuva. Muita chuva. Saímos cedo de casa. Eu, meu pai e o Zanin. Era o Zanin? Acho que sim. Era com ele que eu e meu pai íamos em todos os jogos do Coxa quando eu era criança. Colocadas as capas depois de estacionar o carro, fomos nos encaminhando até o final da fila que se estendia pela Ubaldino do Amaral. Quando chegamos a ela, o primeiro vendedor já nos abordou. Uma bandeira do Brasil pro piá? Aqui tá 5, lá na frente vai tá 10. Meu pai entrega a nota e o vendedor me entrega pelo cabo de plástico a bandeirinha do país, também de plástico.
Mais chuva. A fila andava lentamente. Pra passar o tempo, lembro que nesse dia me ensinaram o grito clássico dos chilenos: “Chi, chi, chi! Le, le, le! Viva Chile!”. Não vá me gritar isso lá dentro, hein! Até pouco tempo atrás eu tinha visto mais jogos do Chile no estádio do que do próprio Brasil. Hoje, é empate: 3 a 3.
Rumores chegavam de que, próximo ao portão 1, muita gente estava pulando a catraca. Segure bem firme em mim e não solte. Não lembro de ter nenhum receio: com meu pai eu estava seguro. Os passinhos eram diminutos quando entramos no estacionamento do Couto, o pessoal já começava a se empurrar. Na minha frente vi homens pulando a catraca do estádio e seguranças estagnados. Pingos na capa. Ao meu lado, policiais militares faziam uma solicitação inusitada: os pequenos cabos das bandeirinhas de plástico deveriam ser retirados e descartados ali mesmo. Tudo bem entrar no estádio quem não tinha ingresso, mas os cabos das bandeirinhas estavam absolutamente vetados.
Aperto, muita gente. Chuva. Tudo o que eu conseguia olhar agora eram as costas de quem estava na minha frente (provavelmente o Zanin) e centenas de cabos de plástico misturados ao cascalho do chão. Por um momento achei que meus pés, antes colados à terra, já não a tocavam mais. Felizmente essa sensação durou pouco, e chegamos à tão sonhada catraca. Um funcionário nos ajudou com os ingressos e, enfim, entramos. Estávamos dentro do Couto. Veríamos o Brasil jogar.
Uma moça nos entregou um colete amarelo com o símbolo da TIM e da Federação Paranaense. Tirando nossas memórias, essa era a única recordação que tivemos daquele 7 de outubro. Os ingressos se perderam. A bandeirinha também. O colete, imagino, segue guardado em uma gaveta do meu quarto em Campo Largo (caso não tenha parado no lixo pelas mãos da minha mãe).
Foram poucos passos dados dentro do Couto. Era impossível tentar avançar pra qualquer direção, afinal, tinham 53 mil pessoas naquele nosso templo, talvez 55 ou 60. Meu pai conseguiu cavar um espaço ali mesmo, no primeiro anel, logo depois do portão pelo qual passamos. À nossa frente um cara gigantesco bloqueava boa parte da visão. Quando ele olhou pra nós, nos reconhecemos. Ele jogava basquete contra a empresa do meu pai pelos jogos do SESI. Rimos, nos cumprimentamos, e ele abriu espaço para que nós tivéssemos a visão do campo. Ali, naquele cantinho, vi pela primeira vez o gramado intacto, mesmo com o volume de chuva que caiu durante o dia. Bateu um orgulho. Meu time cuidou bem do palco. O seleto grupo canarinho não jogaria em qualquer lugar: se o tempo não dava pra controlar, o tapete dava. Aquele canto do primeiro anel, próximo a uma das pilastras de sustentação dos outros níveis de arquibancadas, até hoje tem uma energia diferente para mim. Quando trabalhei no Coritiba, 13 anos depois deste dia, gostava de tirar um tempo para ficar ali, sentado, recordando do passado e imaginando o futuro.
Dali eu consegui ver gente pendurada nas torres de iluminação da Mauá, hoje setor Pro Tork. Uma visão engraçada pra época (que loucos!) e impensável nos dias de hoje. E dali eu vi Rivaldo. É dele que eu lembro, era ele que meus olhos acompanhavam pelo campo. Ele era a estrela daquele time. Em transe, não lembro do momento que o jogo começou, nem da torcida pedindo raça após o primeiro tempo, nem de quando o jogo terminou. Mal lembro do que meu pai conversou comigo, mas lembro dele citando o Rivaldo, que tinha as pernas meio tortas, né? Sim, na minha lembrança, tinha.
Torcemos para que um gol saísse no primeiro tempo, do nosso lado. Mas como bons coxas-brancas que somos, essa sorte não tivemos. Mas lembro da explosão da torcida no gol de Edilson Capetinha no início da segunda etapa. Esse gol até consegui ver. Lá longe, o goleiro chileno saindo, a bola meio rasteira, meio quicando, indo em direção ao gol, e a rede balançando. E ali, pertinho da gente, Marcos comemorando. Do segundo, só a segunda explosão da torcida. Olhei pra cima e perguntei, de quem foi, pai? De quem foi? Sorrindo, pulando, ele grita: do Rivaldo! Do Rivaldo!
Hoje eu não estarei no Couto pra ver o Brasil novamente nessa minha outra casa. A vida me levou para o Rio de Janeiro, e é daqui que vi há algum tempo um outro Brasil x Chile, que teve o primeiro gol de Vinícius Júnior pela Seleção. Mas o Couto tava comigo, pela minha bandeira do Coxa, que faço questão de levar sempre que o Brasil joga. E com ela eu levo comigo essas recordações. Não. Hoje eu deixo para que outros piazinhos e gurias criem suas próprias recordações do primeiro jogo do Brasil que verão. Que verão em Curitiba, que verão no Couto Pereira. Meu dia foi há 23 anos. Que daqui 23 alguém escreva um texto como esse, lembrando, talvez, do Alisson comemorando um gol, ou de como Vini Jr. driblou o zagueiro do Equador pra marcar um golaço.