O Coritiba tem um projeto de construção de um Centro de Treinamentos enorme. Dizem que pode vir a ser o maior da América do Sul. Mas já adianto aqui que tijolo não faz formação: quem faz formação são ideias, objetivos, processos e pessoas.
O projeto é lindo, com mini estádio e vários campos de futebol e hotel para que crianças e adolescentes possam morar. Mas, opa. O CT ficará em Campina Grande do Sul, o dobro da distância da localização do atual CT, o Bayard Osna, em Colombo. Longe da capital, com transporte público demorado, é fato que os (e as) atletas do Coritiba praticamente viverão dentro do Centro de Treinamentos.
No Twitter, fiz 15 perguntas que a Treecorp deveria responder sobre este novo Coritiba que está sendo vendido aos torcedores, e duas delas faziam referências ao CT. Uma especificamente surpreendeu e foi alvo até mesmo de piadas por parte de alguns fakes e torcedores, natural quando o questionamento é disruptivo: neste novo espaço de convivência dos atletas do Coxa existirá áreas para lazer e prática de outros esportes? Explico a minha pergunta contextualizando.
6. Ainda em relação ao CT: existirão áreas para a prática de outros esportes (futsal, futebol de rua, skate, natação, judô, tênis) pra fazer com q o atleta desenvolva novas percepções motoras (e pra q possam brincar e desfrutar da infância/adolescência)?
— lucas kotovicz (@lucaskotovicz) May 24, 2023
O divertimento
A primeira questão, e talvez a mais básica, é que, se o Coritiba vai abrigar centenas de crianças tão longe, então ele precisa transformar o ambiente em algo divertido para eles (Alex, ídolo do clube, bate sempre nessa tecla de divertimento). O futebol é o core, mas a criança precisa de outras atividades para se divertir e, através do divertimento, se desenvolver. Nunca podemos nos esquecer que, mesmo num ambiente extremamente competitivo, a criança precisa ser criança: brincar, se divertir.
É bom lembrar que nem todas (aliás, a maioria) as crianças virarão jogadores e jogadoras de futebol. Muitas delas se descobrirão em outras profissões e também em outros esportes. O futebol talvez não vire prioridade de muitas delas, e por isso, como fator de desenvolvimento humano, é essencial que o ambiente em que elas vão viver proporcione diferentes formas de práticas de atividades físicas e lúdicas, ainda que competitivas.
Aliás, são nesses ambientes que também poderão existir interações agregadoras entre atletas das equipes principais e atletas das categorias de base. Uma conversa ou um ensinamento marcante às vezes são feitos nos lugares mais inusitados. Por que não numa luta de judô? Por que não numa quadra de tênis?
Além de ser fator de divertimento e desenvolvimento para crianças, estes lugares podem ter o mesmo efeito nos adultos. Não á toa pilotos de Fórmula 1 praticam outros esportes para criarem laços de amizades e, também e consequentemente, para desenvolverem outras aptidões motoras que agreguem na Fórmula 1. Falaremos sobre isso mais adiante.
O desenvolvimento humano
Se os processos focarem exclusivamente na criação de um atleta de futebol que jogue bem, então a formação será incompleta. É preciso formar atletas dentro da cultura do Coritiba, e a construção do novo CT é a oportunidade perfeita para que o clube passe a pensar formas diferentes de formação, não só do profissional, mas também de caráter e cultural.
Vou citar muito aqui o processo de formação do Bayern de Munique (no qual, sinceramente, o Coritiba deveria se inspirar e lá no final explicarei o motivo), que tem como objetivo formar um atleta para seu time profissional por ano. Uma das estruturas que o Bayern tem dentro de seu novo CT é uma escola. Além de ensinar seus atletas sobre a história e cultura de construção do clube (além de todos os aspectos que envolvem o futebol, claro) o Coritiba deveria também abrir as portas para que crianças de Campina Grande do Sul frequentem e aprendam no CT. O clube precisa retribuir para a comunidade, e não só tirar para benefício próprio. O clube é da sociedade.
Pegando como exemplo outro clube no qual o Coritiba deveria se inspirar, o Athletic Bilbao, da Espanha: se um jogador não se torna profissional, o clube paga uma bolsa de estudos nos Estados Unidos¹. Lá o desenvolvimento cultural é muito forte. Os atletas das categorias de base tem “senso de gravidade e orgulho”, tradição herdada dos pais e avós². Eles entram em campo sabendo o que defendem. A equipe é conhecida por só colocar em campo jogadores com raízes bascas e, mesmo tendo que achar atletas num ambiente de pouco mais de 3 milhões de pessoas, a força mental criada é tão forte que o Athletic Bilbao é uma das três equipes que nunca foram rebaixadas pra segunda divisão espanhola. Ao lado dele só os gigantes Barcelona e Real Madrid.
Conhecer o clube e conhecer o jogo precisa ser foco. O atleta coxa-branca precisa entender desde cedo o peso que a camisa do clube tem e pelo que muita gente passou para que ele pudesse representar a instituição. Isso vai muito além do salário: o atleta precisa ter orgulho de jogar pelo clube, ser engajado e fazer o que for necessário para ajudá-lo a vencer. Isso é uma construção que começa desde cedo, e o ambiente onde a maioria dessa formação é construída é no Centro de Treinamentos.
O CT precisa ser o lugar primordial de desenvolvimento de apego por parte do atleta e, hoje, não é. Não à toa hoje há uma evasão muito grande de atletas no Coritiba e pouquíssima identificação. Os últimos ídolos que o clube tentou criar foram Rodrigão e Alef Manga (um saiu e outro pode sair pelos fundos). Igor Paixão, Igor Jesus e Raphael Veiga ficaram pouquíssimo no clube e foram vendidos. Léo Gamalho não teve o contrato renovado. Dos atletas revelados na década de 90, 2000 e 2010 apenas Alex, Henrique, Willian Farias e o meia atacante Rafinha voltaram ao clube. Todos passam longe de serem unanimidade pelos diferentes modos como se envolveram com o clube. Estão sendo ou já foram muito criticados.
O desenvolvimento motor
Para muitos profissionais a prática multiesportiva iniciada desde as categorias mais baixas agrega no desenvolvimento motor e só melhora a prática no futebol. Nico Kasmmann, que em 2017 era responsável pela resistência e condicionamento das categorias de base do Bayern, é favorável a essa ideia: “para súbitas mudanças de direção, é olhar como os jogadores de rugbi fazem”³, cita como exemplo.
Exemplos de atletas que se beneficiaram de outros esportes e aplicaram conhecimentos adquiridos no futebol são vários. O tae kwon do ajudou Ibrahimovic com sua flexibilidade de movimentos. Rogério Ceni jogou tênis e vôlei quando estava no ensino fundamental.
Diferentes esportes desenvolvem diferentes coordenações motoras nas crianças. E o ganho que elas trazem pode ser aplicado de diferentes maneiras dentro do futebol.
Prevenção de lesões
O Coritiba tem dois históricos interessantes: um bom e outro péssimo. O bom é que costuma revelar e vender atletas das linhas defensivas: Adriano, Rafinha, Miranda, Lucas Mendes, Henrique, Juninho, Yan Couto, só pra citar os principais como exemplo. É tradicional no clube que a defesa seja muito bem trabalhada, e essa especificidade cultural é quase inconsciente. O clube sofre pancadas o tempo todo, vindas de todos os lugares. O torcedor já se acostumou a sofrê-las e isso vai criando casca. O mesmo acontece com os atletas. Não é à toa que a defesa é uma das bases mais sólidas do clube (embora esteja deixando à desejar nos últimos anos).
E o péssimo histórico é o de lesões. Ainda quero fazer esse levantamento, pois não tenho os números em comparação com outros clubes do Brasil, mas tenho a impressão de que, pelo baixo número de jogos que o Coritiba faz, as lesões acontecem em demasia. Há possíveis inúmeros fatores dessas causas, mas, no novo Centro de Treinamentos, a prática multiesportiva nos atletas de base pode ajudar a construir um futuro mais sólido nesse aspecto.
O movimento repetitivo do futebol faz com que o atleta use, desde os 9 ou 10 anos, os mesmo músculos e as mesmas partes do corpo, estressando-as. A visão do Bayern sobre isso é simples: ao praticar outros esportes, a criança desenvolve outros músculos, faz menos esforço e, consequentemente, tem menos lesões. Andreas Kornayer, alemão hoje no Liverpool, tem formação em judô e valoriza “os movimentos dinâmicos que outros esportes usam para auxiliar na prevenção de lesões”⁴.
A construção de uma abordagem multiesportiva nas categorias de base traria um duplo benefício: agregaria na formação dos defensores (que ficariam mais fortes e com maior capacidade motora) e preveniria as lesões no futuro.
CT aberto
O rival Athletico fechou o CT. É quase impossível saber o que acontece lá dentro. Essa é a forma do clube rubro-negro trabalhar. Com origens alemãs, o Coritiba deveria fazer exatamente o contrário: se inspirar um pouco mais no Bayern e abrir o Centro de Treinamentos para seus torcedores. Lá, a torcida acessa gratuitamente e pode assistir aos treinos apreciando uma cervejinha, coisa que ensandeceu Pep Guardiola e fez ele colocar uma cortina preta para que determinados treinos não fossem vistos. Mas é a cultura do clube. E a cultura do Coritiba é aberta, mesmo a atual gestão tentando ir contra essa corrente natural.
Claro, o ambiente precisa ser controlado e as regras do local precisam serem seguidas. Ninguém pode atrapalhar ou gritar. É um ambiente de trabalho. É difícil pensar numa cultura assim no Brasil, mas se tem um lugar que essa cultura pode ser iniciada, é no Coritiba: nos últimos anos o clube promoveu treinos abertos no Couto Pereira para determinados jogos-chave.
O CT será da SAF, mas levará o nome do Coritiba, e se o Coritiba usará dele, então a torcida precisa estar presente. A comunidade coxa-branca precisa participar de todos os momentos. O clube precisa criar um senso de pertencimento. Por que não criar um translado Couto Pereira /CT em um ou dois dias da semana para seus sócios? O Coxa precisa pensar fora do que é feito atualmente. Precisa mudar.
Cultura anti-machista
Se você leu atentamente, viu que indaguei sobre uma cultura anti-machista no CT e no clube como um todo, isso porque a cultura machista ainda está presente. É a primeira vez que estou escrevendo sobre isso, e por isso decidi preservar os nomes dos/das envolvidos/envolvidas. Quando trabalhei lá, em 2014 e 2015, presenciei e soube de inúmeros episódios machistas, tanto de funcionários/líderes/atletas para com funcionárias, e também de atletas para com funcionárias e mulheres da imprensa. Não foi uma ou duas vezes que ouvi atletas (alguns casados) pedirem para apresentarem mulheres que chegavam à sala de imprensa a eles. Uma vez escutei: “o foda é que se eu for dar entrevista pra ela, vou querer comer”.
Isso não acabou. Recentemente existiu mais um caso envolvendo um profissional do futebol, que solicitou que funcionárias parassem de frequentar o CT porque elas estavam atrapalhando na concentração dos atletas durante os treinos. O mesmo já tinha acontecido com outros profissionais do futebol e outras funcionárias antes de eu começar a trabalhar no clube.
Então, como atletas dos times masculino e feminino (incluindo categoria profissional e de base) vão poder conviver em harmonia num ambiente assim? Quem trabalhar no CT (e o número de funcionários provavelmente triplicará ou quadruplicará, dado o tamanho do lugar e os novos processos e categorias que serão instaurados) deverá saber conviver em sociedade e sob regras rígidas. O CT será uma mini cidade e o respeito deverá prevalecer e ser obrigatório, o que é o mínimo. Crianças e adultos conviverão no mesmo lugar e atletas, dirigentes e funcionários deverão ser exemplos 24 horas por dia. A responsabilidade do Coritiba para com as pessoas aumentará muito e, por isso, é essencial que a cultura anti-machista passe a vigorar no Coritiba.
Diferente e único
O Coritiba precisa ser diferente e único e a Treecorp precisa se inspirar em clubes europeus com características parecidas com as do Coxa. Pegar elementos ali e aqui de projetos bem sucedidos para implementar no novo projeto do Coritiba e, assim, transformar o clube em único no Brasil. O Coritiba pode ser diferente e pode inspirar. O clube não vai ser nunca o maior clube do Brasil. O clube não vai ter a maior torcida ou uma projeção nacional. O Coxa é completamente diferente de Corinthians, Flamengo, Fortaleza ou Athletico. O que é melhor? Jogar com posse de bola ou jogar baseado em contra-ataque? Jogar com 3 ou 4 zagueiros? Para um clube um jeito será melhor que o outro. Uma jeito de gerir pode funcionar em uma empresa e não funcionar em outra. A empresa (aqui, o clube) é quem precisará escolher o que é bom para ela e o que a fará torná-la única e bem vista no mercado, perante imprensa e até mesmo perante seus torcedores. O clube hoje está com medo. Precisa ousar, sonhar e buscar realizar.
Indagar sobre colocar outros esportes dentro da dinâmica do CT não é deixar de lado o futebol. Pelo contrário! É priorizar ainda mais o esporte e o desenvolvimentos dos atletas alviverdes.
Assim como Athletic Bilbao ou o Lyon, o Coxa tem uma base de torcedores com alto poder de consumo em uma única localidade regional, e precisa priorizar e fidelizar essa base. Na partida são 11 contra 11 e são só 40 mil pessoas de um universo de 1 milhão que precisam ir todo o jogo dispostos a serem, pra usar o clichê, o 12º jogador em campo. Dá pra ser campeão, dá pra revelar, dá pra criar uma cultura vencedora e tradicional e dá, principalmente, para o clube ser o fator principal na construção de seres humanos melhores. Tudo isso em muito menos tempo do que os 25 anos que o Athletico levou. O mundo está globalizado e as oportunidades estão diante da nossa cara para serem agarradas.
Tudo isso passará pelo novo CT e em como ele será usado.
¹,²,³ e ⁴: informações retiradas do livro “A Escola Europeia”, de Daniel Fieldsend, publicado no Brasil pela editora Grande Área.
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