Eu juro que não foi premeditado. Anteontem terminei Estrela Solitária, biografia de Garrincha escrita por Ruy Costa, livro que eu queria ler há 15 anos. Terminadas as páginas, fui para a tela começar Elza e Mané, série documental dirigida por Caroline Zilberman, que em pensamento prometi que veria somente após finalizada a obra de Ruy Castro. Os créditos do último episódio subiram hoje, 20 de janeiro.

20 de janeiro, logo o dia em que Mané Garrincha e Elza Soares morreram, separados por 39 anos. E que descobri só hoje, assistindo aos últimos minutos da extraordinária série.

Minha ideia era gravar um vídeo sobre minhas percepções sobre o livro que me encantou. Os detalhes minuciosos da vida de Garrincha, os artifícios literários para prender a atenção do leitor, o tema – escrito com tamanha maturidade – que nem parece ter sido elucidado para o público no longínquo 1995. Mas o documentário foi tão impactante quanto a biografia de Castro, um complemento tão perfeito lançado 27 anos depois do livro, que não dá pra falar de um sem falar do outro.

E eu realmente não ia falar. A preguiça de voltar a escrever quase me catou, mas não tive como ignorar a coincidência do 20 de janeiro.

Eu queria ler Estrela Solitária desde 2009, quando uma das minhas primeiras professoras na faculdade de Jornalismo, Ana Mira, elogiou o livro em aula. Até então eu não tinha sido apresentado a este tipo de literatura. A estrangeira dominava minha estante, com os romances de Rowling, Tolkien e Zafón se destacando. No Jornalismo, vieram Capote, Morais, Melo e Barcellos. Não sei porque não li Castro antes. A minha desculpa mais conveniente era, claro, o preço da biografia de Garrincha, sempre o dobro das outras. Ou mais.

Os anos se passaram, outros livros viraram prioridades… e me mudei pro Rio de Janeiro. Conheci a Livraria da Travessa (meu novo refúgio nas andanças por shoppings) e, na seção de Esportes (a primeira pra qual minhas pernas me levam) lá estava ele, imponente, iluminado e caro. Mas era chegada a hora de eu leva-lo. No Rio, o deixei na estante. Quando acabava um livro até pegava pra folhear, mas as letrinhas pequenas – tal qual minha paciência – me faziam coloca-lo de volta à prateleira. Foi só no final de 2023 que tomei coragem. E vergonha na cara. Mas era pra ser no tempo que tinha que ser. E talvez, se eu tivesse lido antes, esse livro não teria tanto significado pra mim como teve agora.

Tive inveja da escrita de Ruy Castro. Me envolvi com a prosa e com cada detalhe minuscioso conquistado nas mais de 500 entrevistas que fez para o livro. O que mais me cativou é a forma de preparar o leitor para o que acontecerá lá na frente. Na página 192 Elza Soares é citada pela primeira vez, ao final de uma parte do capítulo, mas sem envolver o nome dela ao de Mané. Apenas cita, dentro do contexto do livro, como que alertando o leitor: “essa aí vai ser importante daqui a pouco, presta atenção nesse nome”. Elza de fato só iria entrar na vida de Garrinha quase 100 páginas depois, mas esses toquezinhos de antemão me causavam ainda mais vontade de continuar lendo.

Como outro de tantos exemplos, após pouco mais da metade do livro, Castro encerra um capítulo desta forma:

“Ninguém podia adivinha – nem ele, em os 146.287 torcedores no Maracanã – que aquele Botafogo x Flamengo de 15 de dezembro de 1962 seria, de certa maneira, a última partida de Garrincha”.

Eu, desconhecedor da história de Mané, que pra mim era só mais uma lenda do futebol a conquistar uma Copa praticamente sozinho, pensei: “mas… como? Ele está no auge!”. É mais um toque sutil de que muita desgraça está por vir, afinal ainda restam 224 páginas de história. Páginas praticamente 100% dedicadas ao alcoolismo de Garrincha.

Li depois que Ruy Castro, após terminar Anjo Pornográfico (que ainda não toquei, peço perdão pelo pecado) queria escrever um livro sobre alcoolismo e que Garrincha foi o primeiro nome que veio à cabeça. A doença está presente desde as primeiras páginas, no começo contada com sutiliza e descontração, tal qual a bebida é no meio de comemorações, conquistas e farras. Nessa hora eu leio empolgado, conhecendo bem mais do que eu sabia sobre suas façanhas com a bola no Botafogo e nas primeiras Copas conquistas. Do meio pro fim, porém, li com uma carga enorme de tristeza e pena.

Como eu disse, o livro chegou pra mim no momento que tinha que chegar. Acompanhei o esfacelamento de Garrincha para o álcool sabendo a sorte que tive de ter um avô que também tinha a mesma doença crônica, mas que por um milagre do destino – ou por força de vontade dele mesmo, jamais saberemos – acabou. O álcool nunca esteve presente nas festas da minha família por causa do meu vô. Foi uma vida de celebrações à base de refrigerante. Os médicos falavam que ele jamais pararia de beber. Certo dia ele teve um AVC. Ficou de cama, sem conseguir falar e mexendo apenas a mão. Dessa vez os médicos disseram que ele poderia permanecer assim pro resto da vida. Sabe-se lá como se recuperou: voltou a andar, a falar, a jogar cartas. Só não voltou a beber. Nunca mais pôs uma gota de álcool na boca. Como a ciência explica? Não sei se quero saber. Meu vô morreu poucos meses antes de eu começar o livro, aos 83. Teve uma viga longa, ainda que cheia de problemas decorrentes do álcool e do cigarro de palha. Vai saber como eu iria encarar os olhos azuis do seu Silvestre depois de saber no âmago que a vida dele poderia ter sido muito pior.

É sob o manto do alcoolismo que percebemos o que foi Elza Soares, praticamente a segunda biografada de Estrela Solitária: possivelmente a maior brasileira de todos os tempos. Enfrentou fome, racismo, tiro (em mais de duas ocasiões), palavras e o próprio Garrincha. Fez tudo por ele, mas também se defendeu quando a violência aconteceu. E por essas que invejo a escrita de Ruy: mesmo sabendo de toda a dor e sofrimento previamente, ele conseguiu construir a história cronologicamente sem que eu desconfiasse do peso da última metade do livro.

Então, impressiona como a série documental Elza e Mané conseguiu colocar em vídeo – 27 anos depois – os principais momentos do Estrela Solitária. É como se o documentário fosse uma prova real da biografia. As mesmas coisas ditas não tão somente por Ruy Castro, mas de pessoas que conviveram com as duas estrelas. Os mesmos detalhes precisos, só que agora corroborados com entrevistas novas e antigas, costuradas numa edição impecável. E, de volta, o mesmo sentimento: da euforia à tristeza absoluta.

A imaginação deu lugar às imagens brutas de um Garrincha bêbado dando entrevista, de uma Elza com olhar dolorosamente penetrante, mas que, apesar de ter sido a maior vítima dessa história, não esboçou sequer uma vez que esse substantivo deveria ser-lhe atribuído. Os coadjuvantes sem rosto: uma filha aqui, um companheiro de equipe lá, um neto aqui e um irmão lá, agora choram na nossa cara. Caroline Zilberman mostra pra nós que é real, que a história dos dois foi real. A maior história de amor do nosso Brasil, com todas as suas intensidades e desfortunas? Um casal separado não por um amante enciumado, mas sim por um veneno legalizado? Diria que sim. Se não bastasse tudo li e ouvi, ainda tem esse fatídico 20 de janeiro que não deixa mentir. Parece até que Elza se esforçou pra viver pelos anos que Garrincha e Garrinchinha não viveram. Nesses meus 32 anos de leituras, filmes e séries, não me recordo de um amor público tão forte no nosso país.

Se Ruy Castro deu luz à história de Elza e Garrincha em meados da década de 1990, quando as informações eram poucas e difíceis de se encontrar, Zilberman mostrou a força dessa história num momento em que pouco damos valor para quem a escreveu lá atrás. Há quem pense que a música nasceu em 80 e que o futebol nasceu depois de 2010. Não nos esforçamos para entender contextos de uma época de fundação do que é valorizado hoje. Aliás, praticamente não nos importamos. O que é pra agora é pra agora, o passado que fique escondido de todos lá atrás.

Ruy deixou um registro físico para a posterioridade. Caroline resgatou uma memória pra nós mesmos e pra quem vier pela frente. E também um final arrebatador (e que deu inveja também), desses que sobe crédito e você chora com o coração disparado. A cereja tardia, colocada quase 30 anos depois de pronto o bolo.